segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Levantar

Eu vou te contar a história de um garoto que conheci nas ruas do centro da cidade. Bem ali, nas escadarias da igreja -que me desculpem, eu não me lembro o nome- eu estava com os fones de ouvido, com uma canção -que me desculpem, assim como a igreja, também não lembro o nome-, e no sofrer da música que eu cantava internamente, quem olhasse minha face, poderia ver que não tava tudo bem. E ele viu. Primeiramente fitou-me ao longe, ao ver que eu o olhei de volta, seguiu com passos sujos no chão quente, porém cautelosos. Pouco a pouco. Sentou um tanto que longe, mas ainda me espionava... O garoto deu um sorriso largo. Tirei os fones pra ver o que ele queria, no que ele começou:
- Tá tudo bem?
- Tá sim e com você? - A gente sempre responde isso automaticamente, né?
- Achei que cê tava triste, aí vim perto pra te contar uma piada
- Foi só uma música... Mas aceito a piada.
- Inda bem que cê num tá triste, por que eu só sei uma que ninguém nunca ri. O que o tomate foi fazê no banco?
- Eu sei lá!
- Foi tirar extrato! - Ficou me olhando com a cara de quem sabia que eu não riria. Dei um sorriso amarelo e disse:
- Qual teu nome?
- Henrique da Silva Ferraz, mais ferrado que o Satan.... Opa, é melhor eu não falar disso na frente da igreja! - Disse ao fazer o sinal da cruz.
- Oras, Henrique... Devia dizer isso em lugar algum. Estais em pé, estais a tentar fazer os outros rirem, mais vale um pé sujo do que a consciência.
- Concordo plenamente, Dona, vou parar de dizê isso. Mais vale um batom sujo do que a consciência. - Disse apontando pra minha boca.
Limpei o lado da boca que ele havia apontado. Minha mão borrou-se com o vermelho. Ele prosseguiu
- Precisa ficar sem graça não. Achei que quando os adultos se beijassem eles ficassem felizes e não tristes;
- Henrique, foi um beijo de adeus...
- Oh sim, desculpa eu, dona. Meu pai vive falando que minha mãe antes de partir não deu nem um beijo nele. Ele traiu ela, e quando ela morreu estava em outra cidade... Partiu sem um beijo. Então um dia a tia Elvira me disse pra eu não ficar triste, que minha mãe está com Deus. Ela não disse como chega nesse Deus. Desde então eu já estou na terceira cidade, na vigésima igreja atrás dela, mas achei não.
- Henrique, Sua mãe está com Deus. Deus é o todo... Logo sua mãe estará em todos os lugares quando você pensar nela. É só fechar os olhos e imaginar que você está a abraçando.
- Se é tão fácil assim, por que você ao invés de ficar triste após o beijo de despedida você só não fechou os olhos e imaginou?
- Por que o meu ex não está com Deus....
- DEUS ME LIVRE, ELE ESTÁ COM O SAT...
- Não, Henrique, ele só não foi para o outro lado ainda entende? Ele só me deixou.
- Não fique triste então, o que me disse, vale pro cê também.. " estais em pé, estais a tentar fazer com o que os outros rirem"...? Alegre-se! Completo dizendo que estais viva e que agora que me disse como chega até o tal Deus e até minha mãe, eu posso retornar para casa da tia Elvira.

E foi assim que saí do centro da cidade até a rodoviária com o meu mais novo amigo, Henrique.
Foi assim que eu provei pra mim mesma que Deus está em todos os lugares.
O Henrique me levantou naquela tarde, e eu o levantei.
Nos levantamos juntos.
E assim todas as pessoas que se esbarram, que conversam, que se afagam com as palavras e com os olhares se levantam.





Ciclo rotineiro

Desejou boa noite ao entregador de pizza e voltou ao elevador.
Sétimo andar, terminou o vinho
quente.
Comeu ao esfriar

Ao deitar-se ligou o ventilador
Calçou as meias até o joelho
era a única veste

Concentrou-se nos afazeres do dia seguinte
acabou pegando no sono
as 05:50 tocou o alarme
estendeu-se até 06:20

Café preto na padaria da esquina
Almoçou um fast food
O serviço ia, ia, ia
sem fim, não acabava.

O metrô na volta
A lotação ao redor
O bolso vazio

Contou os miúdos em casa
Restou-lhe pedir a última pizza